Cartografias de uma viela
Tecido de pele e tinta
Cartografias de uma viela
Tecido de pele e tinta
Sobre
Cartografias de uma viela: tecido de pele e tinta apresenta um traço singular que a diferencia das mostras habituais do circuito institucional da arte: as obras que exibe irradiam uma experiência para além das paredes do Instituto Çarê, de onde surgiu a proposta de organizá-la. A exposição propicia o encontro com o trabalho de cada um dos seis artistas aqui reunidos e nos faz vislumbrar a experiência pungente de um lugar. Para mim, em especial, tornou-se claro, no decorrer do processo que nela resultou, que essa experiência diz respeito ao lugar físico e existencial do qual os trabalhos brotavam, remetendo à geografia e à atmosfera que acolhem os deserdados da “cidade oficial”, que sempre tratou de empurrá-los para mais longe e, assim, de invisibilizá-los. Ao longo dos cerca de oito meses em que dialogamos com Adriele Oliveira, Danilo Juliano, Deusvaldo Pereira, Difavela, Luiz Lira e Ramon Santos, eles falaram, com muita gana e determinação, a mim e Claudinei Roberto, irrequieto e exigente parceiro nesta curadoria, de sua experiência de jovens pretos, moradores da favela.
Continuamente autoproduzido por seus moradores, o espaço da favela se faz a partir de um traçado sábio e caprichoso, que lhe confere pulsação própria – o equilíbrio instável, mas persistente, ao qual a cidade oficial o relega. Seu desenho (uso aqui, bem a propósito, o termo caro à tratadística clássica, que prenunciava, na cidade renascentista, a racionalidade almejada pelos primeiros urbanistas para a cidade moderna) é lábil e sagaz, e sua feição – esquiva e intrincada – é o oposto da clareza que os modernos viam na retícula da cidade industrial. Imagino que bater diariamente esses caminhos emaranhados dote os corpos de uma incrível plasticidade, uma inteligência espacial aguda – micro e macro –, o que sugere a enorme potência estética e política dos jovens moradores da favela no mundo contemporâneo. Não por acaso, a maioria dos jovens escolados nesse traçado evasivo tem a pele preta.
A experiência desse lugar que o contato com os artistas me proporcionou impregnou-me muito vivamente, com sua cultura e seu estilo próprio, um modo de vida comunitário e de sociabilidade particular, da ordem da circulação, da interconexão, da proximidade extrema entre coisas e pessoas, da fricção, da vitalidade dos afetos e da tensão entre todos esses acontecimentos. A vida na favela impõe, enfim, essa proximidade e essa exigência incessante da circulação, dos movimentos refinados e sutis dos corpos. Pessoas, coisas e funções veem-se compactadas num espaço exíguo, e a condição da sobrevivência é que os corpos sejam ágeis, que cultivem uma resistência a toda prova que garanta respostas lépidas e eficientes no plano local, além de uma vigilante percepção do todo, junto a uma inteligência global.
Não surpreende, portanto, que a autopercepção, a invocação ou mesmo a celebração da presença e da integridade do corpo sejam questões centrais nas obras desses artistas. O apelo à memória, que está, de modo mais ou menos evidente, em todas as obras, é um instrumento crucial de resgate dessa presença. Essa particularidade me revelou (a mim, que venho do outro lado da cidade) a extraordinária capacidade de invenção e resistência desse lugar, dessa experiência com a qual Cartografia de uma viela… nos abraça: um espaço que deve ser conquistado uma vez mais a cada dia e, por isso, saturado de história e memória.
A receptividade que encontro nesses artistas, quando falamos sobre seus trabalhos, não atenua a distância que me separa de sua experiência de vida, por mais que ela me envolva. Não obstante, o vínculo que desejamos construir juntos, a partir desta exposição, é forte e ambicioso, e ultrapassa os abismos de raça e classe, notoriamente graves em nosso país. Esse vínculo nasceu de uma parceria entre o Çarê e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, a partir de uma série de conversas que mantive, em 2022, na condição de então diretora do IEB, com Elisa Bracher, que integra o Conselho Consultivo do Instituto. Com Monica Dantas, atual diretora do IEB, começávamos a formular uma linha de ação institucional voltada a integrar jovens negros à vida universitária, a partir do acesso ao enorme potencial formador do acervo documental, iconográfico e bibliográfico sobre o Brasil mantido pelo IEB. Cartografias de uma viela… é uma das frentes desse projeto, chamado Vastas marés. Materiais do Arquivo do IEB, como registros do cangaço e as memórias de Aracy de Carvalho, tocaram a imaginação de alguns artistas do grupo. O projeto segue auspiciosamente seu curso sob a nova direção do IEB.
Adriele Oliveira, Danilo Juliano, Deusvaldo Pereira, Difavela, Luiz Lira e Ramon Santos pensaram suas intervenções especialmente para esta exposição. Mesmo na heterogeneidade de interesses e escolhas estéticas que os mobilizam, ressalta, em todas as obras, uma formidável poética da plasticidade e da integridade do corpo, do corpo em movimento no tempo e no espaço, deslizando com leveza e astúcia, cuidando permanentemente de se preservar, na luta para derrotar a alienação e a espoliação. Além dessa extraordinária experiência do corpo que atravessa todos os trabalhos, adivinhamos neles a desenvoltura com a qual os artistas se apropriam de diferentes espaços, que de pronto fazem seus, para logo mais os deixar para trás e se aventurar em novas paragens, para circular, pisar em tantos caminhos, recuperar os rastros perdidos de seus antepassados. O título da mostra, escolhido por eles, é revelador dessa luta, que faz parte de seu cotidiano e de seu modo de ser. As alusões à delicadeza, à fragilidade, mas também à potência do corpo estão presentes, de modo admirável, no enunciado que nos propõem.
Sônia Salzstein
Curadora
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Adriele Oliveira, artista visual, experimentadora de escrituras e bordados; Danilo Juliano, xilogravurista, pintor e grafiteiro; Deusvaldo Pereira, fotógrafo e documentarista; Difavela, artista visual, artesão, arte-educador, grafiteiro e xilogravurista; Luiz Lira, pintor, desenhista, gravurista e ceramista; Ramon Santos, artista visual, desenhista e xilogravurista. Os artistas que compõem o elenco desta exposição têm em comum a origem étnica e social, proletária e periférica; e, em alguns casos, dividem também a condição de migrantes. Há, ainda, uma vocação insurgente e irredentista, confirmada nas qualidades resilientes que têm garantido a esses artistas a manutenção e o aprofundamento das pesquisas e dos processos que logram desenvolver, mesmo sob condições que lhes são frequentemente adversas.
A variedade dos resultados apresentados, exposta na multiplicidade dos recursos técnicos postos a serviço dessas poéticas, e a especificidade dessa gramática preta, proletária, periférica, antirracista, feminista e insurgente, valem-se também de meios histórica e tradicionalmente consagrados, como a pintura, a gravura e a fotografia. Como os protagonistas do processo de manufatura dessas proposições vivenciam, eles próprios, as angústias e o enlevo que são próprios do meio que examinam – a favela –, o uso desses recursos é feito em chave crítica, às vezes, esgarçando e desafiando os limites da linguagem operada. Assim, a favela conforma ou refina, quem sabe, o apuro visual que filtra, dessa vivência, a experiência necessária à revelação dos percursos que, paulatinamente, pautam uma sintaxe plástica sofisticada.
As artes, em suas múltiplas manifestações, são, entendemos, resultado de trabalho; linguagens laboriosamente criadas e desenvolvidas no curso da história, e compreendidas de modos diversos a partir de ambientes e contextos sociais distintos. A circulação dessa produção através de exposições pode, ou não, ensejar um necessário debate sobre a inserção da produção artística preta, proletária e periférica, muitas vezes tida como marginal, e até mesmo antissocial e disruptiva em relação à ordem estabelecida.
Essa perspectiva perniciosa promove tentativas de controle que regem todas as instâncias da sociedade: a legislatura, a academia, a religiosidade, a educação e o sistema das artes. Exemplo disso são as tentativas arbitrárias de supressão das favelas, que têm como consequência a erradicação e o epistemicídio de um estilo de vida, de uma cultura e, sobretudo, da potência – que não pretere, em suas narrativas, as mazelas inerentes a essa condição/situação, mas garante a manutenção de inestimáveis testemunhos, inclusive artísticos, sobre história e a memória das populações que as habitam.