Axs nossxs filhxs
D.C.
Axs nossxs filhxs
D.C.
Sobre
Discutir raça, gênero e relações afetivo-sexuais tem sido recorrente nos estudos das ciências sociais sobre o negro no Brasil. O tema é de tal complexidade que pede abordagens novas. É o caso dessa exposição. Em Axs nossxs filhxs, D.C. apresenta uma série de pinturas que pretendem abrir um diálogo sobre a necessidade, especialmente das pessoas negras, de criar um imaginário novo da nossa presença e afetividade – um imaginário que fuja do espectro da cisnormatividade e de uma construção binária de mundo.
Considerando que nossa afetividade, enquanto pessoas negras, foi e ainda é atravessada pela construção branca de como relacionar-se, D.C. nos provoca a repensar nossa existência no mundo e a reclamar novas formas de ser e de viver, além da ótica colonial. Afinal, não há como romper esses pactos sem, antes, saber quem somos dentro dessa construção sociopolítica que tantas vezes passa por um lugar de desumanização.
Antes de criar suas pinturas, D.C. estabelece com seus parceiros um ciclo de diálogo que permite que elaborem um olhar para si e para aquilo que a construção de sua imagem, enquanto homens negros, representa para a sociedade. Assim, as pinturas da artista são uma subversão do olhar sobre esses corpos, não mais vistos da perspectiva da violência ou da objetificação, e sim em um lugar de afeto, entrega, troca e cumplicidade.
Em sua construção pictórica. D.C. parte de aproximações com a pintura acadêmica, colocando em tensão a ausência de uma história da arte que contemple outras narrativas, não oficiais. Mas o trabalho não se centra apenas em um lugar de denúncia, e sim no fato de que precisamos repensar a construção imagética que rege o imaginário do mundo.
Uma das leituras possíveis da obra de D.C. é que a artista tira o corpo negro de um lugar inanimado e passivo dentro da construção estética ocidental na história da arte. Podemos pensar, por exemplo, na natureza-morta, gênero de pintura que representa figuras e elementos estáticos e inertes do cotidiano, como frutas e flores; e em como Debret, Rugendas e outros artistas do século 18 contribuíram para uma iconografia brasileira que retrata negros e indígenas de forma objetificada, quase que mimetizados à natureza.
Mas outras leituras dessas telas são possíveis. De forma literal, podemos pensar que é preciso fincar os pés na história para ressignificá-las. Ou no oposto: a liberdade de retratar apenas a beleza do mundo, rompendo com qualquer necessidade elucidativa ou de implicar-se politicamente o tempo todo. Ou seja, de dar-se ao direito de existir, apenas.
Isso fica claro nas telas em que D.C. se retrata com seus parceiros no sofá, em atos cotidianos, como a troca de afeto ou o descanso. Ver dois corpos negros engajados nessas ações nos lembra como, a certa população, o direito à trivialidade foi negado.
Como diz D.C., Axs nossxs filhxs não trata do que esperamos das próximas gerações, e sim de qual imaginário novo deixaremos para elas.
Carollina Lauriano, curadora independente
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Essa fístula e essa flor
Enquanto avançava nas páginas de O ausente, de Edimilson de Almeida Pereira, o livro me remetia a vivências e impactos de minha relação recente com D. C. O autor conta a história de Inocêncio, um empelicado – que, como explica, “não é uma criança como as outras… Nasce coberto e segue coberto pela vida inteira. Sua pele é sua armadura”. Sublinhei trechos, marquei palavras desconhecidas. A seguir, uma colagem dos fragmentos que me tocaram; ela não segue a ordem em que foram escritos, mas a de minhas associações. Espero que faça sentido para você também.
Para começar
O entendimento funciona se a gente põe cada peça na sua hora, para não perturbar o calendário da criação.
O encontro com D.C.
Eu, nessa hora, vivi minhas dúvidas todas de uma vez, toda pureza arrogante não serve de espelho para nossa imagem rota. Estou fora da pele que me vestia.
Quem somos
Quem se rasga e se costura, sem linha nem dedal, entende que somos maiores quando endireitamos a espinha, esticamos o pescoço e miramos todos os lados. Com nossos próprios olhos.
Eu sou assim. Todos nós somos essa fístula e essa flor, cada qual responde pela combinação que fizer desses efes, afinal, somos iguais: ponta e furo que nascem do mesmo baque.
Quase não sofri para escolher entre uma e outra coisa: era tudo uma, ainda que diversas, colchão de espuma e canivete, dia xucro, amora silvestre… Numa hora benfazeja e, noutra, ratoeira… Nenhum se engane de seu perfume. O que é delícia se estraga, vinagre… Nenhum entrou nessa casa aziago e saiu sem o seu doce mel.
O processo
A mão, sempre ela, põe em melhor ordem aquilo que conhece, mas se rompeu, e não houve cerzideira que lhe pusesse remendo. A única maneira de tirar dos ombros o passado é contar outra vez o vivido, como se fôssemos outra pessoa.
A gente só descobre que vive quando tira a argola do pescoço, quando vai por conta própria desmontar a forca.
As palavras
O mundo é a pedra de amolar da palavra. Nesse mundo de pessoas que mal se entendem, o bom é desenferrujar a garganta, a língua, os dentes. São ferramentas que estragam com ou sem chuva.
É isso, meu amado, uma palavra que vai ao poço e retorna vazia, vai ao fogão e regressa faminta.
Nunca soube ao certo o que diziam, o como diziam me interessava. O ouvido não sabe parir com precisão, mas a boca é berço e calvário.
O meu legado de que deve curar falava comigo: vai, faz o que tem de ser feito. Não mede o sofrimento de quem sofre pela língua de quem fala.
Para encerrar
O humano tem que sair da casca, cair, quebrar se quiser ser amado, A queda é a salvação e dos cílios para dentro, cada um é dono de si.
Não sou de ações grandes, mas os meus argumentos, é o que dizem, andam a cavalo.
Em verdade, o que é dito, quando alguém quer, está marcado, nem que seja para ser desfeito a canivete. Não falo não para alguém me entender, mas para deixar que eu habite nele e sugue a sua fala, abelha que sou, fabricante de estranho mel. É que a flor alheia também é estranha e juntos, o que dizemos, não caberia no jardim do Éden.
Mas era sabido: atrás de um apreço se esconde o preço: há sempre alguém com licença para fazer a cobrança. Para que tivesses a honra, deverias entregar o seu íntimo.
Sabia como ninguém que serviço começado só vale se terminado.