na boca da noite, os muruins
davi de jesus do nascimento
na boca da noite, os muruins
davi de jesus do nascimento
Sobre
Qualquer um que por ventura ou convite se encontre com o trabalho de davi terá a grata surpresa de, estando em raso desconhecido, ser levado desapercebidamente a velejar no corpo d’outro, ser morador-passagem de uma terceira margem que se faz, no ritmo de serra e suor de correnteza, diante dos olhos dengosos de todo espectador. Quem vem ver ganha também um rio, um modo de navegar, alçar as velas dos próprios barcos, achar voragem pro significado que, não estando dado, carece de ser cavoucado com as mãos.
davi de jesus do nascimento é um artista barranqueiro de Pirapora-MG, altura do maior trecho navegável do rio São Francisco. Seu trabalho vem conduzido nas águas desse rio que serve de cama e esteio ao “corpo-embarcação”, mas absorve também outros trânsitos e paragens de uma história familiar compartilhada e banhada no mesmo leito. O artista é um coletor, herdeiro de um acervo de fotografias da família, e organizador de uma abundância de imagens que se empilham na margem das águas doces quando anoitece.
Na exposição na boca da noite, os muruins, davi seleciona trabalhos – entre fotografias, desenhos, pinturas e objetos – que têm, com ele, guardado certa permanência no tempo; e que dizem, de alguma forma, sobre parte do percurso feito até aqui, desde os tempos em que era singrador antigo e caminhava com uma carranca de vinte quilos na cacunda. No acervo, deixam-se conhecer pelas fotografias a mãe, que ainda jovem encantou-se, o pai, pescador e marceneiro, e o avô, João das Queimadas; além dos trânsitos, viagens e estadias à beira do rio com a família. Nesses registros, a noite e o rio não são apenas partes da paisagem, mas personagens a fabular junto com o artista um segredo, em torno da luz amarelada do lampião e das locas abertas ao pé das árvores, passagens de terra sulcadas pela insistência das águas. De toda vida vivida e sabida, vem a água expor-lhe as raízes.
Embora a curadoria e o manejo com a fotografia sejam apenas um afluente do trabalho com a imagem, nele muitas vezes o artista orienta um modo de tatear o ofício de saber ver o que o rio outrora cuspiu, e de fazer desse exercício um “exorcismo de dor”, um modo de reorganizar a morte ou de trazer o corpo para ser testemunha de um movimento que não cessa de fazer-se. exorcismo de dor é, inclusive, o nome dado a uma série de fotos instantâneas – que também fazem parte desta exposição – em que o artista costura sobre a imagem de seu corpo as partes já mortas de animais.
Ainda nessa trouxa de alagada memória, davi coloca reunidos sempre em bando os desenhos da série gritos de alerta, carrancas-mensageiras que uma vez na proa dos barcos dão a falar dos sustos encontrados em águas longes. Essa viagem não finda sem que fiquem pelo caminho os rastros e o assombro das criaturas que habitam funduras; nestas estão fabulados os corpos dos “aguamentos”, um modo de informar que também a “correnteza zanza silêncios”.
Juntam-se ainda à reunião desse acervo objetos guardadores – um berço de fazer ninar cardumes e carrancas e um paquete em cujas proas se dividem também duas possibilidades de travessia. Os objetos em madeira encharcada foram feitos a quatro mãos, pelo filho e pelo pai, e cortam o fluxo do rio imaginado fosse o ritmo da viragem o visgo que dá liga à ambiência de agora.